Por que brasileiros não são considerados latinos nos EUA

Erro em pesquisa oficial revelou que 70% dos brasileiros morando nos EUA se identificam como latinos. Mas definição do governo americano considera como ‘hispânicos ou latinos’ apenas pessoas de países de língua espanhola.

 

Em 2020, ao menos 416 mil brasileiros vivendo nos Estados Unidos se identificaram como “hispânicos ou latinos” na ACS (American Community Survey), maior pesquisa domiciliar americana.

O número chamou a atenção porque, em 2019, apenas 14 mil brasileiros haviam sido classificados dessa forma. Em 2021, foram 16 mil.

O salto registrado em 2020 foi fruto de um erro no processamento da ACS pelo Departamento do Censo dos Estados Unidos. O equívoco trouxe à luz uma desconexão entre a classificação oficial americana e a identidade dos brasileiros.

 

O caso foi tema de artigo publicado em abril pelo instituto de pesquisa americano Pew Research Center.

Quem é considerado latino nos EUA?

 

Oficialmente, brasileiros não são considerados “hispânicos ou latinos” nos Estados Unidos.

A origem disso está numa lei aprovada em 1976 pelo Congresso Americano, que determinou a coleta de dados no país sobre um grupo étnico específico: “americanos de origem ou descendência espanhola”.

Essa legislação classificava esse grupo da seguinte maneira: “Americanos que se identificam como sendo de língua espanhola e traçam sua origem ou descendência no México, Porto Rico, Cuba, América Central e do Sul e outros países de língua espanhola.

Dessa forma, estavam incluídos na classificação 20 países falantes de espanhol na América Latina, mas não o Brasil, falante de português, ou outros países latinos, mas não hispânicos.

Em 1977, o Escritório de Administração e Orçamento dos EUA publicou então os padrões para a coleta de dados étnicos e raciais no país com cinco classificações: indígena americano ou nativo do Alasca; asiático ou ilhéu do Pacífico; negro; hispânico; ou branco.

Pela definição de 1977, “hispânico” era considerado uma etnia, não uma raça — a raça dizia respeito a características físicas, herdadas entre gerações; enquanto a etnia dizia mais respeito à identidade cultural e linguística, nessa classificação.

 

Assim, na coleta de dados americana, os hispânicos podem ser de qualquer raça.

Vinte anos depois, no entanto, essa classificação foi revisada. E, em 1997, a categoria “hispânico” mudou para “hispânico ou latino”.

À época, o Escritório de Administração e Orçamento dos EUA justificou a mudança dizendo que o uso dos termos tinha variações regionais, com “hispânico” sendo mais usado no Leste do país e “latino” mais no Oeste.

“Essa mudança pode contribuir para melhores taxas de resposta”, argumentava o departamento americano.

Aí criou-se a confusão para a classificação dos brasileiros.

Porque, embora para o governo americano, a classificação “hispânico ou latino” diga respeito somente às pessoas de “cultura ou origem espanhola”, para nós, o termo “latino” remete ao fato de sermos latino-americanos e falarmos uma língua latina, o português.

A reclassificação no Censo americano

 

Nos censos de 1980 e 1990 nos EUA, valia a autodeclaração. Então, em 1980, 18% dos brasileiros vivendo nos EUA foram contabilizados como hispânicos. Em 1990, foram 33%.

Mas, a partir de 2000, o Departamento do Censo dos EUA passou a fazer uma recategorização posterior.

Assim, quem dizia ser “hispânico ou latino”, mas, ao mesmo tempo, informava ser brasileiro, era então reclassificado como “não hispânico ou latino”.

O mesmo acontecia com pessoas de outros países não falantes de espanhol, que porventura se declarassem latinos, como filipinos, portugueses e nativos de outros países centro-americanos e caribenhos não-hispânicos, como Belize, Haiti, Jamaica, Guiana, entre outros.

Desde 2006, além do Censo decenal, os EUA passaram a contar também com a American Community Survey (ACS), uma contagem populacional anual.

Com esse esquema de reclassificação em vigor, a parcela de brasileiros quantificados como “hispânicos ou latinos” caiu para 4% ou menos em quase todas as edições da ACS.

Esse percentual residual de brasileiros contados como “hispânicos ou latinos”, mesmo nos anos em que a reclassificação funcionou adequadamente, se explica porque, quando a pessoa responde ser hispânica “de outra origem”, mas não preenche essa origem, o Departamento do Censo não faz a reclassificação.

O Pew Reserach Center consegue identificar serem brasileiros olhando para dados de país de nascimento e ancestralidade, em outra parte do formulário da ACS, o que não é considerado pela autoridade censitária americana no processo de reclassificação.

Mas por que dizemos que o percentual de brasileiros classificados como “hispânicos ou latinos” caiu para 4% ou menos em “quase” todas as edições da ACS? Porque, em 2020, foi diferente.

O erro de pesquisa que revelou a identidade latina dos brasileiros

 

Durante o processo de edição dos dados da ACS de 2020, o Departamento do Censo dos EUA cometeu um erro e deixou brasileiros e outros grupos sem esse processo de reclassificação.

Com isso, o número de brasileiros que se identificaram como “hispânicos ou latinos” saltou de 14 mil em 2019, para 416 mil em 2020.

 

Entre os filipinos, o número passou de 44 mil para 67 mil; entre belizenhos, de 4 mil para 19 mil; e entre pessoas de países caribenhos não-hispânicos, de 36 mil para 71 mil.

Mesmo o fenômeno afetando outros grupos, o caso dos brasileiros se destaca, pois 70% da comunidade brasileira nos EUA contabilizada na ACS se declarou “hispânica ou latina”, revelou o erro de pesquisa, comparado a 41% dos belizenhos, 3% dos filipinos e 3% dos caribenhos não-hispânicos.

“O grande número de brasileiros que se identificam como hispânicos ou latinos destaca como a visão deles de sua própria identidade não necessariamente se alinha com as definições oficiais do governo”, observam Jeffrey S. Passel e Jens Manuel Krogstad, autores do estudo publicado pelo Pew Research Center.

“Também ressalta que ser hispânico ou latino significa coisas diferentes para pessoas diferentes”, acrescentam os pesquisadores.

EUA pode mudar classificação de brasileiros?

 

Para o brasileiro Raphael Nishimura, diretor de amostragem do Survey Research Center na Universidade de Michigan, o caso serve para refletir sobre como pesquisas são feitas.

“Metodologicamente, isso [o erro na ACS de 2020] é bastante interessante para ilustrar um dos aspectos do erro de mensuração em pesquisas: o impacto do entendimento da pergunta por parte do respondente no que se pretende mensurar”, escreveu Nishimura, sobre o estudo do Pew Research Center.

“Nesse caso, me parece que o U.S. Census Bureau [Departamento do Censo dos EUA] deveria deixar mais claro nessa questão o que é e o que não é considerado como latino, hispânico ou origem espanhola”, defendeu o estatístico.

Segundo Nishimura, apesar da desconexão entre classificação oficial e identidade dos brasileiros revelada pelo erro de pesquisa em 2020, parece improvável que o governo americano reveja essa classificação em algum momento próximo.

Em junho de 2022, o governo anunciou uma revisão na coleta de dados sobre raça e etnia nos EUA, que poderá valer já para o Censo de 2030.

Mas essa reavaliação parece estar mais focada nas comunidades do Oriente Médio e Norte da África, que podem ganhar uma classificação própria nas pesquisas demográficas americanas, separada da categoria “branco”, observa o estatístico, que mora nos EUA há 13 anos.

Se os brasileiros fossem oficialmente considerados “hispânicos ou latinos”, seríamos o 14º maior grupo latino dos EUA, acima da Nicarágua (395 mil) e abaixo da Venezuela (619 mil).

 

Ainda assim, a população hispânica é tão grande nos EUA (61,1 milhões), que a comunidade brasileira contabilizada (569 mil na ACS de 2021) não chegaria a 1% do total de latinos.

“Aparentemente, apesar de sermos algo como a 14ª maior população latina nos EUA, mal contaríamos como uma casa decimal nessa população como um todo. Então não deve nem haver um incentivo para isso [mudar a classificação de ‘hispânico ou latino’ para incluir os brasileiros]. Mas quem sabe agora que temos um brasileiro no Congresso”, brinca Nishimura, fazendo referência ao congressista republicano George Santos, filho de brasileiros, envolvido em diversas polêmicas nos últimos meses.

O deputado George Santos, republicano de Nova York, deixa uma reunião da conferência do Partido Republicano na Câmara no Capitólio, em Washington, em 25 de janeiro de 2023 — Foto: Andrew Harnik/AP

O deputado George Santos, republicano de Nova York, deixa uma reunião da conferência do Partido Republicano na Câmara no Capitólio, em Washington, em 25 de janeiro de 2023 — Foto: Andrew Harnik/AP

 

A comunidade brasileira contabilizada na ACS pode, no entanto, estar subestimada. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil calcula o número de brasileiros vivendo nos EUA em 1,9 milhão — trata-se da maior comunidade brasileira no exterior, segundo relatório de agosto de 2022 sobre o tema.

FONTE: G1

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