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“Brasil não entendeu a gravidade do problema”, diz especialista sobre escândalos de manipulação

Tiago Horta, estudioso do tema e membro de comitês de integridade do COB e da Federação Paulista, diz que crimes chegaram à Série A pela falta de ação de autoridades e dirigentes

 

– Infelizmente ainda teremos que lidar com muitos escândalos, alguns de proporções até maiores do que o atual, para conseguirmos mudar o cenário em que nos encontramos.

O autor da frase é Tiago Horta, membro do Comitê de Defesa do Jogo Limpo do COB e dos comitês de integridade da Federação Paulista de Futebol e da Federação Internacional de Tênis de Mesa. Estudioso do assunto, Tiago concedeu a seguinte entrevista por e-mail ao ge, na qual lamenta a falta de ações de autoridades, entidades e de uma regulamentação para o mercado de apostas.

Os esquemas de manipulação normalmente ficavam restritos a divisões inferiores ou campeonatos pouco vistos. Agora chegaram à Série A. Por que isso aconteceu?

– Quanto mais importante um jogo de futebol, maior a liquidez, mais dinheiro pode ser movimentado nos mercados. Isso é importante porque quanto mais dinheiro nos mercados, maiores são também os aportes que os manipuladores poderão fazer para tentar maximizar seus lucros sem que as fraudes sejam percebidas. Jogos de categorias de base e divisões inferiores, embora sejam oferecidos pela maioria das casas de apostas, não possuem grande liquidez e isso limita o potencial de ganhos com as manipulações. Em geral, não dá pra aportar muito dinheiro num jogo desses porque a fraude acabaria sendo detectada facilmente. Já em partidas da Série A, como os valores movimentados nos mercados são muito maiores, é mais fácil para o manipulador fazer com que seus aportes destinados à prática da fraude passem despercebidos dos mecanismos de controle e detecção. Consequentemente, aumenta a possibilidade de alcançarem lucros maiores.

– A isso que falei, soma-se também um outro fator: a incapacidade demonstrada até agora, no Brasil, para se entender a real dimensão do que está acontecendo e para lidar com a situação toda envolvendo as manipulações de forma séria e estruturada. É notório que nos últimos cinco anos os casos de manipulação de resultados passaram a ocorrer cada vez com mais frequência por aqui, mas, a despeito disso, muito pouco foi feito para se combater o problema. E um futebol sem escudos de proteção será sempre uma porta aberta à ação de manipuladores. Foi assim em outros países e está sendo assim no Brasil. Os manipuladores são indivíduos ousados e inteligentes. Desde que começaram a agir por aqui, há vários anos, eles vêm testando nossa forma de lidar com o tema. Na medida em que percebem nossas fraquezas, se sentem mais confiantes para irem subindo de divisão degrau por degrau. Começaram lá na Série D, agora já estão na Série A, infelizmente.

O que explica os diversos casos de fraudes identificados na Série A envolvendo punições de atletas por cartões amarelo e vermelho?

– As apostas em cartões (amarelos ou vermelhos) são espécies daquilo que é conhecido como mercados de apostas secundários. Costumam movimentar bem menos dinheiro do que os mercados principais, como o mercado de gols (over/under) e o de resultados (1×2) e por tal razão a quantidade de casos de manipulação envolvendo estes últimos costuma ser bem maior. No entanto, devemos lembrar que os criminosos estão sempre buscando alguma vantagem em cima dos que estão à sua caça. E, nesse contexto, os mercados secundários, em algumas situações bem específicas, podem ser atrativos para eles.

– É esse o caso envolvendo os mercados de cartões já que: (1) sistemas de monitoramento não costumam estar calibrados para identificar esse tipo de fraude; (2) basta que se alicie um único jogador para que se consiga realizar a fraude nesses mercados (diferente das manipulações de resultados que se realizam em mercados principais quando um grupo de atletas se faz necessário para que a fraude seja consumada dentro de campo); e (3) o aliciador costuma conseguir convencer o atleta mais facilmente a praticar esse tipo de fraude já que a propõe ao atleta como algo supostamente inocente, em que ele não estaria contribuindo decisivamente para modificar o resultado do jogo.

Fato é que dificilmente uma fraude nos mercados de cartões irá ocorrer nas Séries C e D do Campeonato Brasileiro ou em jogos envolvendo somente equipes de menor relevância já que nesses eventos a liquidez dos mercados não costuma ser convidativa.

O que explica o fato de atletas de primeiro escalão, que supostamente recebem bons salários estarem se envolvendo nessas manipulações?

– Para responder a essa pergunta, primeiramente devemos considerar que nem todos os atletas da Série A possuem o mesmo patamar salarial. A verdade é que diferenças enormes de remuneração existem de um elenco em relação a outro e também dentro dos próprios elencos. Não é raro termos entre os atletas de um mesmo clube alguns que ganham valores estratosféricos e outros que recém foram promovidos ao time principal e que ainda ganham salários mais baixos. Mas, para além dessas diferenças salariais, devemos compreender que a realidade de vida dos atletas também é muito diferente. Nós que estamos fora, em geral, não possuímos qualquer conhecimento sobre a história de vida dessas pessoas ou sobre quem frequenta o entorno deles. Aliás, muitas vezes nem os gestores dos clubes, treinadores ou seus próprios companheiros possuem esse conhecimento.

– O que quero dizer é que não parece raro que os atletas tenham, por exemplo, apostadores entre seus familiares e amigos e que essas pessoas de alguma forma possam eventualmente pedir a eles favores em campo para que possam ganhar algum dinheiro com apostas. Da mesma forma, não parece ser difícil que, a depender do meio social de origem desses atletas, eles ou seus familiares possam ter algum tipo de relação com criminosos e, eventualmente, sejam levados a agir de forma indevida no campo. Em suma: a verdade é que o problema vai muito além da questão puramente econômica (salarial). Existem também diversos aspectos sociais a serem entendidos para que a percepção em relação a esse problema possa ser completa e possamos utilizar essas informações para proteger o futebol.

Existe algum país que tenha feito um trabalho de combate a este problema e possa servir de exemplo para o Brasil?

– Alemanha e Espanha. Não somente no que se refere ao combate, mas também em relação à prevenção do problema. Esses dois países passaram por situações bastante traumáticas ainda na década de 2000, mas desde então têm se empenhado muito para solidificar seus sistemas de integridade. Desenvolvem trabalhos permanentes na área de educação de atletas, árbitros e dirigentes. Todos esses atores são alertados sobre os riscos do envolvimento com a manipulação de resultados e orientados sobre protocolos a serem observados no caso de eventual abordagem de aliciadores. Também o combate ao problema é realizado de forma efetiva e se dá por meio da colaboração entre agentes públicos de segurança, autoridades esportivas e entes privados (empresas de monitoramento e associações de casas de apostas), os quais trocam informações constantemente em nome da preservação da integridade no esporte.

As quadrilhas que forjam resultados e assediam jogadores são grandes, são complexas? Ou isso também é trabalho de lobos solitários?

– A doutrina ensina que existem diversos grupos criminosos que se financiam a partir da exploração dos mercados de apostas, seja fraudando resultados ou lavando dinheiro através deles. Além disso, sabe-se que a manipulação de resultados se trata de um problema de dimensão, predominantemente, transnacional. No entanto, nem todo caso de manipulação de resultados que vemos tem uma máfia internacional por trás. Tem gente inescrupulosa que já se deu conta da sistemática a ser colocada em prática para se conseguir manipular um evento esportivo e que tem agido nesse sentido, seja financiando de esquemas ou aliciando atletas e árbitros. A legislação criminal pouco rígida para lidar com o problema e a quase inexistência de condenações pelo Poder Judiciário também contribuem para que essas pessoas tomem coragem para se aventurar nesse ramo ilícito.

– Um exemplo clássico e próximo dessa sistemática é o caso de manipulação de resultados ocorrido no Brasil no ano de 2005. Aquele esquema que teve dois árbitros como personagens centrais foi financiado por “empresários” do interior de São Paulo. Não houve ali, em princípio, qualquer participação de agentes internacionais. Todos os envolvidos naquelas fraudes podem ser qualificados como aventureiros, ou lobos solitários, pra usar o termo que você bem utilizou. Ou seja, eram pessoas que enxergaram naquilo uma oportunidade de ganho fácil e decidiram colocar o plano em prática, mas que não detinham grande know-how no assunto. Aconteceu daquela vez e é difícil duvidar que, em vista da pouca proteção à integridade do futebol que se nota, não existam outros lobos solitários agindo por aí ou planejando para agir.

O fato de o mercado de apostas no Brasil estar desregulamentado torna mais fácil a ação dessas quadrilhas?

– O mercado não-regulamentado facilita sim a ação de indivíduos e grupos que praticam não somente a manipulação de resultados, mas também a lavagem de dinheiro. A verdade é que a ausência de regras cria um cenário no qual obrigações são inexistentes e isso acaba sendo sim um facilitador para a ação de criminosos. Atualmente, por exemplo, as diversas casas de apostas que atuam no Brasil, mas operam desde outros países, não possuem qualquer obrigação de compartilhar com as nossas autoridades públicas informações sobre movimentações estranhas de valores ou sobre fraudes ocorridas em suas plataformas. E nem existem meios concretos e efetivos para que se consiga exigir isso delas.

– A regulamentação, portanto, desde que tenha regras que cuidem desse e de outros temas ligados à integridade, pode ser um elemento bastante importante no combate às fraudes. No entanto, é importante estarmos atentos para o fato de que a regulamentação das apostas somente está longe de ser a solução dos problemas de integridade esportiva do Brasil. Ou seja, independentemente de termos ou não apostas regulamentadas é possível (e faz-se necessária) a criação de um sistema nacional de integridade que verdadeiramente proteja o futebol da ação de manipuladores.

Qual deve ser o papel da CBF e das entidades que organizam o esporte nesse cenário?

– Entendo que a CBF deveria buscar assumir uma posição de protagonismo e liderança naquilo que se refere à construção de um sistema nacional de integridade para o futebol. Essa é a postura que foi assumida no passado pelas associações nacionais de futebol da Alemanha e Espanha, países que já apontamos como paradigmas a serem seguidos pelo Brasil, e que acredito deva ser assumida por aqui também. Nesse contexto, creio que a CBF deveria tomar para si a incumbência de criar, co-financiar e gerir esse sistema nacional de integridade, a ser implementado em colaboração com as federações estaduais. E também deveria se mobilizar para construir parcerias concretas e duradouras com o poder público para esse mesmo fim. Já em se tratando das demais modalidades esportivas, acredito que o Comitê Olímpico do Brasil (COB) é quem deve assumir essa mesma posição de protagonismo e liderança.

A CBF sempre usa o argumento de que contrata uma empresa de monitoramento (Sportradar). Mas isso basta?

– O serviço de monitoramento de sites de apostas e detecção de fraudes contratado pela CBF e por diversas outras entidades esportivas é uma ferramenta bastante útil para se identificar a ocorrência de casos de manipulação de resultados que envolvam mercados de gols e de resultados . No entanto, conforme temos visto no Brasil nos últimos dias, casos envolvendo mercados secundários, como os de cartões (amarelos e vermelhos), por exemplo, têm passado longe dos radares desses sistemas.

– Fato é que um sistema de integridade, para que possa efetivamente funcionar, necessita de muito mais do que apenas um serviço de monitoramento. Não se constrói um sistema de integridade com base em ferramentas de detecção somente. Para que seja completo e possa ser exitoso, o sistema deve ser necessariamente composto por ferramentas inseridas em três pilares: prevenção, detecção e correção (punição). É ingênuo, portanto, pensar que a complexa questão da manipulação de resultados pode ser tratada somente com fulcro nas informações fornecidas pelos serviços de monitoramento. Essa falsa percepção denota desconhecimento do assunto, mas infelizmente boa parte dos nossos dirigentes ainda segue insistindo nisso.

Zagueiro Eduardo Bauermann em ação com a camisa do Santos em jogo contra o Botafogo  — Foto:  Ivan Storti/Santos FC

Zagueiro Eduardo Bauermann em ação com a camisa do Santos em jogo contra o Botafogo — Foto: Ivan Storti/Santos FC

O que pode ser feito para impedir que os jogadores (e árbitros) caiam nessas armadilhas armadas pelas quadrilhas?

– O que pode e deve ser feito com relação a jogadores e árbitros é um forte trabalho de educação. De forma permanente, eles devem ser conscientizados acerca dos riscos de se envolverem com a manipulação de resultados e dos protocolos a serem seguidos para que não caiam nas armadilhas. Sei que a frase não é nova, nossos avós já diziam, mas não consigo encontrar outra: “prevenir é melhor do que remediar”.

– A proteção da integridade do futebol (e do esporte, em geral) passa por um trabalho preventivo bem executado. Quanto maior o êxito alcançado na etapa de prevenção, menos esforços serão exigidos nas fases seguintes do processo (detecção e correção). Por outro lado, um trabalho preventivo insuficiente irá fazer com que muitos atletas e árbitros sejam levados a se corromper. E, como consequência disso, serão exigidos imensos esforços para que se possa corrigir esse problema. Aliás, esse é o cenário que temos no Brasil hoje. É preciso, portanto, inverter essa lógica, por meio de maiores investimentos em mecanismos de prevenção.

O que as casas de aposta podem fazer para evitar escândalos como este, para evitar que a razão de existir do próprio negócio seja colocado em risco?

– Não resta dúvida de que as casas de apostas são vítimas da ação dos manipuladores, mas ao mesmo tempo sabemos também que a publicidade dos fatos envolvendo casos de manipulação não costuma ser vista como algo positivo por elas. E é diante disso que, na grande maioria das vezes, seus donos preferem assumir prejuízos em silêncio a denunciar às autoridades públicas fatos criminosos que potencialmente possam resultar num escândalo.

– Agindo dessa maneira, porém, resta claro que estão colocando seus interesses privados acima do interesse público de conhecer sobre os mais diversos casos de manipulação que possam estar ocorrendo. É claro que o mais correto seria que as casas de apostas tivessem, em sentido inverso, uma predisposição natural por colaborarem com as autoridades públicas, tanto no que remete ao combate à manipulação de resultados como em situações que envolvam lavagem de dinheiro. Entretanto, como temos visto, no mundo real isso não acontece. E é exatamente por isso que a regulamentação tende a ser algo positivo em matéria de integridade. Num mercado regulado é plenamente factível a criação de regras que obriguem a colaboração das casas de apostas com as autoridades sempre que houver a detecção de fraudes naqueles ambientes.

O último grande escândalo de manipulação de resultados causou grande comoção nacional, mobilização da imprensa etc. Este agora não parece ter causado o mesmo efeito. O país está mais “anestesiado” sobre esse problema?

– É possível que o país esteja anestesiado sim, mas tenho notado que as pessoas estão pouco a pouco se inteirando melhor do problema e se revoltando. O caso da “Máfia do Apito 2005” foi uma situação bombástica. Num período de menos de quinze dias a notícia sobre as fraudes veio à tona, o principal árbitro envolvido no caso foi preso e onze jogos foram anulados. Tudo ali era uma novidade e foi tratado como um grande espetáculo midiático. A reação das pessoas com aquilo foi de choque.

– Já o caso que estamos presenciando agora (Operação Penalidade Máxima) parece que está sendo derramado na gente gota-a-gota. Além disso, a forma de perceber e compreender as fraudes que estão acontecendo agora não é tão óbvia. O público brasileiro, em geral, não possui ainda uma ampla cultura acerca do que são as apostas e as manipulações de resultados em sentido mais amplo. Até outro dia, ele apenas conseguia enxergar manipulação em casos que envolvessem o resultado dos jogos ou o número de gols marcados nas partidas. Todo o resto era ignorado.

– De repente, a esse público foi apresentada uma nova situação. Agora estão vendo que as fraudes podem envolver também a aplicação de cartões amarelos ou escanteios e não necessariamente se vincularem ao resultado final dos jogos. É uma questão em certa medida cultural, portanto. Mas, ainda assim, vejo que nosso público já está sim se dando conta de mesmo assim o problema é grave e também merece grande atenção das autoridades.

FONTE: Ge

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