Juros, surpresa com EUA e intervenções: o que explica a saída de dinheiro estrangeiro da bolsa brasileira

Os investidores estrangeiros tiraram mais de R$ 20 bilhões da bolsa brasileira neste primeiro trimestre, mostram os dados da B3. Trata-se de uma virada de humor dos estrangeiros com o país, logo depois de uma série de fechamentos em pontuação recorde no ano passado.

Analistas ouvidos pelo g1 atribuem a situação majoritariamente a fatores externos, mas com um bom “tempero” de problemas nacionais.

São três questões principais:

  • Sempre depois de um momento de alta, vêm os períodos de realizações de lucro de investidores e ajuste de posições;
  • Houve uma reavaliação da situação econômica e do patamar de juros nos Estados Unidos, que deslocou recursos para lá;
  • O quadro fiscal brasileiro e as intervenções do governo federal em empresas de peso no índice de ações trouxeram prejuízo extra ao país.

 

Para entender, é preciso voltar um pouco no tempo. No fim do ano, a economia global sinalizava para um momento de arrefecimento da inflação e possibilidade de corte de juros mais cedo em economias desenvolvidas.

Nos EUA, havia expectativa de que o Federal Reserve (Fed) começasse a reduzir os juros americanos em março. A mensagem para investidores era a de que as Treasuries americanas, títulos de renda fixa mais seguros do mundo, logo passariam a pagar menos.

Na Europa, a inflação dava sinais de alívio, e o Banco Central Europeu (BCE) passou também a considerar o início dos cortes de juros.

No mercado financeiro, tudo se antecipa. E ambos os fatos beneficiam as bolsas porque, com juros menores, é preciso tomar mais risco para que os investidores garantam uma boa rentabilidade.

Assim, países emergentes voltam a ser considerados, pois suas empresas mais rentáveis podem garantir um bom dinheiro. E o alívio do cenário externo somou-se a bons indicadores brasileiros.

O Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro veio acima do esperado, a inflação de serviços mostrava desaceleração e o país já estava em meio a um ciclo de corte da taxa básica de juros desde agosto.

O Ibovespa, principal índice acionário da bolsa de valores brasileira, passou por uma arrancada no fim de 2023. De volta aos dados de investimentos estrangeiros, entraram quase R$ 40 bilhões nos últimos dois meses do ano.

Só no mês de dezembro, o Ibovespa acumulou ganhos de mais de 5% e bateu sucessivos recordes de pontuação. Terminou o ano com ganho de mais de 22%.

Na virada para 2024, quase todos esses fatores mudaram.

Bolsa de valores de SP nesta segunda-feira (2). — Foto: BRUNO ESCOLASTICO/PHOTOPRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Bolsa de valores de SP nesta segunda-feira (2). — Foto: BRUNO ESCOLASTICO/PHOTOPRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

A hora da virada

 

O caldo começou a entornar por obra do Fed, o banco central americano. Ao publicar a decisão de dezembro, o Comitê Federal de Mercado Aberto (Fomc, na sigla em inglês) informou que indicadores recentes sugeriam que a atividade econômica do país “desacelerou em relação ao ritmo forte registrado no terceiro trimestre”.

Em outro trecho, o colegiado reafirmou que a inflação americana seguia elevada, mas reconheceu que os preços haviam diminuído no último ano, além de ganhos “moderados” no emprego. O mercado financeiro entendeu que a hora de baixar juros estava próxima.

Em janeiro, o tom foi bem mais cauteloso. O Fed disse que não considerava apropriado reduzir o intervalo de juros até que se tenha “maior confiança de que a inflação está evoluindo de forma sustentável para 2%”, a meta do país.

Além da inflação resistente acima dos 3% na janela de 12 meses, o PIB americano trouxe surpresas neste primeiro trimestre. Em dados desta quinta-feira (28), o indicador registrou alta anualizada de 3,4% no quarto trimestre de 2023, acima do que se esperava no início do ano passado.

O mercado de trabalho dos EUA segue forte. O desemprego chegou a subir para 3,9% em fevereiro, mas ainda está baixíssimo e com demonstrativo de alta de salários, o que gera mais pressão na inflação.

Segundo Luís Stuhlberger, presidente da Verde Asset, parte do motivo para a economia dos Estados Unidos estar forte mesmo com o patamar elevado de juros é o forte aumento de gastos visto durante a pandemia.

“A política monetária e fiscal dos Estados Unidos na Covid, a distribuição de dinheiro, não tem paralelo na história”, afirmou o executivo durante evento promovido recentemente pela Hedge Investiments.

“Sabia-se que já existia uma boa vcina em outubro e [os EUA] continuaram distribuindo dinheiro e com uma política extremamente agressiva por mais um ano, para só depois acordarem que tinham ido longe demais”, completou.

Ou seja: com atividade econômica forte e salários em alta, há dúvidas na cabeça do Fed se é possível baixar os juros sem botar em risco a inflação. Com isso, o mercado financeiro, que estimava uma queda dos juros no país em março, passou a apostar em maio e, hoje, já tem dúvidas sobre junho.

Para Daniel Cunha, estrategista-chefe da BGC Liquidez, a atualização desse conjunto de informações torna natural que os EUA tenham destaque. Com juros altos em aplicações seguras ao mesmo tempo em que a economia mostra sinais fortes, há uma preferência de alocação de recursos por lá.

“Houve ganho até em termos do fluxo de investimento em bolsa, por hospedarem ali as principais empresas de tecnologia, que se beneficiam da Inteligência Artificial e que parecem ser o grande tema de investimentos do momento”, afirma.

O ‘tempero’ de interferência

 

Dado o contexto, é preciso voltar ao Brasil. Com um competidor desse tamanho, faz sentido que a bolsa brasileira saia perdendo. Além do fluxo de dólares estar naturalmente direcionado para fora, houve ganho relevante no final de 2023, que seria embolsado no começo de 2024.

Entram em cena, então, as questões internas. Os debates sobre o cenário fiscal, por exemplo, continuam na mira dos investidores, que seguem atentos aos sinais do governo para saber quais os possíveis resultados do primeiro ano do arcabouço fiscal.

Segundo Stuhlberger, houve uma piora do fiscal nos últimos anos, com um aumento dos gastos públicos e uma perda de arrecadação por parte do governo — de acordo com o executivo, caso o Teto de Gastos ainda existisse, o país estaria R$ 300 bilhões acima do limite.

“Mas, dito isso, a arrecadação está melhor, o PIB do ano passado surpreendeu para cima […] e o PIB deste ano também vai surpreender para cima”, afirmou Stuhlberger em evento.

Além disso, a bolsa brasileira é bastante ligada a empresas produtoras de commodities, em momento que economias desenvolvidas calibram os juros para desacelerar a atividade com o mínimo de danos e a China passa por uma reavaliação completa de sua matriz econômica.

Já seriam tempos desafiadores, até que entraram no jogo as intervenções do governo federal em duas empresas determinantes para o bom desempenho do Ibovespa: a Vale e a Petrobras.

As duas companhias têm grande participação na carteira do Ibovespa. A Vale já sofria com uma queda dos preços de minérios no mercado internacional, que reduziriam sua lucratividade. Até que uma tentativa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de emplacar aliados na sucessão da empresa fez a situação piorar.

Segundo o blog da Ana Flor, Lula vinha se movimentando para levar o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega ao comando da empresa. O gesto não foi bem recebido pelo mercado.

O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, chegou a dizer em entrevista que Lula “nunca se disporia a fazer interferência direta” em uma empresa de capital aberto.

Mas um conselheiro de administração da Vale, José Luciano Duarte Penido, renunciou ao cargo em março justamente por “discordar” do processo de sucessão do atual presidente da companhia, Eduardo Bartolomeo.

Em carta endereçada ao presidente do Conselho de Administração, Daniel Stieler, Penido fala que o processo tem sido manipulado e que sofria “evidente e nefasta” influência política.

Em meio aos imbróglios e especulações, a Vale perdeu quase 18% de seu valor de mercado em 2024.

Na Petrobras, o caso foi ainda mais direto. A empresa registrou seu segundo maior lucro histórico no ano passado, de R$ 124,6 bilhões. Na divulgação de seu balanço, em março, o mercado soube que a petroleira havia decidido pagar apenas o mínimo dos dividendos aos acionistas, sem os chamados “dividendos extraordinários”.

Em vez de ser distribuído, o lucro remanescente do exercício, que totalizava R$ 43,4 bilhões, foi integralmente destinado para a reserva de remuneração de capital, que, segundo a empresa, tem a finalidade assegurar recursos para remuneração de acionistas e recompras de ações.

Segurar o dinheiro em caixa foi um pedido do governo, que deseja que a empresa acelere investimentos em vez de ser uma pagadora de dividendos. Quem tem os papéis da empresa, claro, não gostou.

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Em um dia, a Petrobras teve queda de 10% na bolsa, perdendo R$ 55 bilhões em valor de mercado. Como a empresa havia colhido uma valorização expressiva em 2023 e no início de 2024, o ganho das ações preferenciais neste ano está praticamente zerado.

“Foram vetores que aceleraram, que reforçaram essa saída de fluxo estrangeiro. Foi a somatória de componentes mais gerais, de realocação de capital com a mudança de expectativas lá fora, e um componente específico daqui, com as interferências”, afirma Daniel Cunha, da BGC Liquidez.

 

Cunha diz ainda que é cedo para falar em uma saída estrutural de dinheiro do país. Afinal, a tendência é que, uma hora ou outra, o Fed passe a cortar os juros americanos, trazendo de volta a atenção de investidores para emergentes.

E a avaliação passa também pelo patamar de juros brasileiros. Na última Ata do Copom, o BC informou nesta terça-feira (26) que diante das “incertezas do cenário” sobre a inflação nos próximos meses, julgou apropriado ter “maior flexibilidade” na política de juros e, por isso, evitou projetar um corte da taxa Selic em junho deste ano.

A prévia da inflação de março, divulgada nesta semana pelo IBGE, mostra que a situação brasileira ainda não está pacificada.

Na ocasião, a economista para Brasil do BNP Paribas, Laiz Carvalho, comentou que os serviços subjacentes — indicador que todo o mercado está de olho por conta de seu peso para a decisão do BC —, vieram com número um pouco mais alto que as expectativas (de 0,36% para 0,40%), apesar da desaceleração em relação a meses anteriores.

“Lentamente, mas está desacelerando. Isso corrobora nossa tese de que os serviços subjacentes devem voltar a um comportamento sazonal já no IPCA fechado de março e no IPCA-15 de abril”, afirmou.

Sem juros em queda, o Ibovespa ainda pode ter mais a perder. Só com mais precisão de qual será a Selic no fim do ciclo de corte de juros é que se pode projetar o apetite do investidor para voltar à bolsa de valores ainda em 2024.

*Colaborou Isabela Bolzani

Fonte: G1

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